A evolução das Health Techs e os desafios jurídicos

Fernando Fausto Cervantes Campos

A telemedicina, Health e demais Techs” – a importância da assessoria jurídica, como isso pode desestabilizar ou alavancar novos projetos.

Numa tradução literal, a Organização Mundial da Saúde define Health Tech como “aplicação de conhecimentos e habilidades organizados na forma de dispositivos, medicamentos, vacinas, procedimentos e sistemas desenvolvidos para resolver um problema de saúde e melhorar a qualidade de vida”, podendo enquadrar – de forma bastante simplificada -, toda tecnologia aplicada na área da saúde.

Pensando nisso, hoje, pode-se citar a telemedicina como apenas um dos avanços adquiridos por meio do desenvolvimento da tecnologia de informação voltada para a área da saúde. Apesar da utilização recente, a modalidade de telemedicina foi parcialmente regulamentada há quase 20 anos. Nesse sentido, é válido um breve histórico sobre a legislação que abrange o tema.

Aos 26 de agosto de 2002 foi publicada a resolução nº 1.643 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que visava definir e disciplinar a prestação de serviços médicos através da telemedicina. Já aos 06 de fevereiro de 2019, o CFM publicou a resolução nº 2.227, revogando a resolução anterior e definindo a telemedicina como o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.

Essa nova resolução, apesar de muito mais avançada, ainda era bastante conservadora e limitada, indicando, por exemplo, a obrigatoriedade de relação presencial prévia entre médico e paciente, além de recomendar, nos atendimentos por longo tempo ou de doenças crônicas, o lapso entre as consultas presenciais por prazos não superiores a 120 dias.

Num absoluto retrocesso, a resolução mencionada foi revogada no mesmo mês, com a publicação da resolução nº 2.228, que restabeleceu a vigência da Resolução CFM nº 1.643, aquela publicada em 2002.

Um ano depois, foi promulgada a lei nº 13.989, publicada aos 16 de abril de 2020, dispondo sobre o uso da telemedicina, em razão da necessidade de isolamento decorrente da pandemia causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que assolou o Brasil a partir de março de 2020.

Esse é apenas um dos exemplos de regulamentação na área da saúde que sofreu uma profunda e rápida mudança nos últimos anos.

Sobre tal ponto, tomando como exemplo a questão da telemedicina, foi possível perceber que essa ferramenta, disciplinada e esquecida há quase vinte anos, foi regulamentada, aprovada e passou a ser utilizada em menos de dois meses. A necessidade mostrou que não havia dificuldades outras, que não a burocracia, para que fosse implementada na prática.

Isso demonstra o paradoxo das classes da saúde que, apesar de serem consideradas as mais avançadas, sob a perspectiva tecnológica, se mostram bastante conservadoras quando falamos sobre aplicação cotidiana ao consumidor final.

Apesar das atrocidades causadas pela nova doença, que alcançou a triste marca de dois milhões de mortos ao redor do globo, a sociedade viu-se obrigada a se reinventar em diversas frentes, valendo-se de todas as tecnologias conhecidas e desenvolvendo outras que estavam estagnadas. Na área da saúde, isso não foi diferente, tanto que rapidamente foi possível observar uma disruptura tecnológica que trouxe a utilização de novas ferramentas, como prescrição digital de receitas, a consolidação de prontuários eletrônicos, dentre outras.

Essas ferramentas, embora tenham aparecido apenas recentemente no cotidiano, já eram amplamente fomentadas e desenvolvidas pelas chamadas Health Techs, termo agora utilizado com conotação diversa da atribuída pela OMS.

Apenas no Brasil, foram catalogadas mais de 540 empresas nesse setor, sendo aproximadamente metade delas estruturada em modelos recentes e criadas nos últimos 5 anos.

Assim como acontece com startups de outros segmentos, (Fintechs, Edtechs, Retailtech, Lawtechs) há uma aplicação de capital maciço vindo de fundos de investimento conhecidos como Venture Capital. A maior parte das Health Techs é voltada para a gestão, prontuários eletrônicos e telemedicina, com soluções que visam não apenas clínicas e hospitais, mas também médicos e pacientes. Essa atividade voltada a processos é também chamada de medicina personalizada.

Nesse contexto, assim como ocorre com as demais “Techs”, nota-se a presença de diversos desafios técnicos, como a preocupação com a utilização indevida de dados pessoais, dados gerenciais, funcionalidades e segurança de plataformas.

Muitas vezes, em razão da velocidade no crescimento das plataformas, é possível que as startups venham desacompanhadas da correta assessoria jurídica, principalmente quando confrontada a prática com a legislação vigente.

O foco intenso e acelerado no modelo de negócio, inovação e operação digital induzem essas startups à inobservância de princípios legais básicos, principalmente no tocante à legislação empresarial, tributária e trabalhista, o que vem impactando de forma contundente essas jovens empresas, inclusive levando algumas delas ao encerramento das atividades, ainda que desenvolvam ideias brilhantes.

A título exemplificativo introdutório, podemos citar desde um contrato social mal elaborado (Direito Empresarial), que pode acarretar situações desgastantes aos sócios, passando pela contratação de prestadores de serviço que acabam exercendo atividade equiparada à celetista (Direito Trabalhista), criando um passivo trabalhista/previdenciário, até o recolhimento equivocado de impostos (Direito Tributário), que futuramente podem inviabilizar negócios e recair sobre sócios.

Como informado, esses são exemplos considerados básicos de situações rotineiras que podem desestabilizar um projeto recente, ou em formação, e que, com o apoio de uma assessoria jurídica, são contornados para que os gênios criativos mantenham suas capacidades focadas no desenvolvimento do negócio.

Ainda no mesmo ensejo, importante mencionar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) que, apesar de ainda não possuir sanção administrativa pelo órgão público competente (multas), está em vigor desde setembro de 2020, permitindo a aplicação dos seus efeitos nas demais relações, inclusive com a distribuição de demandas judiciais que podem acarretar indenizações. Sob esse aspecto, recentemente conhecida empresa no ramo da construção civil foi condenada ao pagamento de R$10.000,00 por ter compartilhado dados de clientes sem a autorização destes.

Assim, apesar de as legislações serem aplicadas a todas as startups, no caso das Health Techs, o zelo pelos dados dos usuários/pacientes deve ser ainda maior, isso porque, nos termos do artigo 5º, inciso II, da lei acima, os dados referentes à saúde são considerados sensíveis, o que implica no tratamento diferenciado das informações coletadas.

Autor: Fernando Fausto Cervantes Campos é advogado do escritório Barelli & Gastaldello Advogados Associados.

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